Fugas


Silvana Righi

Nasci em duas cidades, Livramento e Rivera. Uma fronteira entre Brasil e Uruguai, longe de tudo e cheia de turistas. Onde o dólar era dois reais e ainda não tinha McDonald’s nas cidades coirmãs. E claro, que para mim uma cidade só era importante se tivesse McDonald’s. Era esse meu medidor cosmopolita.
Em junho de 96 – quando o dólar era baixo e ainda não tínhamos rede de fast food – nasceu minha irmã. No auge dos meus três anos de idade deixei de ser filha única. Meses depois chegou um circo na cidade em que nada acontecia e meu pai me levou umas duas vezes. Eu não tenho uma lembrança muito formada do circo em si. Mas tenho da ideia que eu tive.
No horário de almoço todo comércio fechava, a cidade parecia mais vazia. Coisas do interior. Mariana, minha irmã recém nascida, berrava no colo da minha mãe. E eu no pátio ouvi ecoar na silenciosa e deserta rua: Atenção! Atenção! Última semana do circo na cidade!
Eu não pensei duas vezes, essa era a minha chance de ir embora com o circo. Eu precisava ir. Minha casa passava por reforma e os pedreiros tinham deixado uma enorme grade que era para ser fixada apenas encostada. Como uma prisioneira que almejava por liberdade, escalei a grade que na hora caiu por cima de mim. Fiquei presa ao chão e com ferros pontiagudos fincados na minha cabeça. Levei quatro pontos, ganhei uma cicatriz na sobrancelha e o circo foi embora sem mim.
Minha fuga número dois, assim como o nome da música dos Mutantes, banda daquela mulher que me lembrava a boneca Emília e a franja era igual a da minha mãe. Não, Rita Lee não passou nem perto de Livramento.
Entretanto, no verão de 98 - na cidade que nada acontecia, em que o McDonald’s não tinha chegado e o dólar ainda era baixo - foi anunciado que teria um grande evento. Show da Daniela Mercury. Nasci nos anos 90, era óbvio que eu gostava de axé. Mesmo preferindo Banda Eva com Ivete Sangalo, decidi que eu iria nesse show. Toda cidade iria.
Mas, eu não era todo mundo. Meus pais não iriam em um show de axé, e caso fossem não levariam uma criança. Tracei um plano infalível, tal que nem Cebolinha, eu fingiria para meus pais que eu estava dormindo, eles adormeceriam, eu fugiria para a casa das minhas tias e iria com elas para o show. Não tinha como dar errado, foi uma estratégia muito bem pensada. Na tão esperada noite, fui para a cama, dei boa noite para os meus pais e fechei os olhos. Só não contava que eu fosse pegar no sono e me acordar só na manhã seguinte com o “canto da cidade” já silenciado.
A terceira e última fuga se deu quando eu acabei o colégio e fui morar em Santa Maria. Foi uma fuga gradual, porque eu voltava para visitar minha família. Passado os quatro anos de faculdade vim morar em Porto Alegre.
Livramento ficava cada vez mais distante, porém ainda era lá que as pessoas que eu mais amava faziam morada. Minhas raízes foram enfraquecendo. Perdi minha avó, minhas tias e meus pais vieram morar em Porto Alegre.
Mês passado, depois de quase três anos, voltei para a minha cidade natal – com o dólar alto, mas com um McDonald’s em funcionamento. Me senti turista, uma estrangeira na sua suposta casa. Da fronteira carrego o frio e as memórias mais lindas da minha vida. Vou embora – com uma cicatriz na testa, sem nunca ter ido em um show da Daniela Mercury e com a certeza de que foi a cidade que fugiu de mim.

voltar

Silvana Righi

E-mail: righilealsilvana@gmail.com

Clique aqui para seguir este escritor


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose